Dizer beirão é exaltar a voz da
independência que Viriato fez ecoar pelas quebradas da serra e pelos vales que
a circundam; é dizer franqueza, bondade e hospitalidade!
Que admira, pois, que neste
coração da Pátria, como lhe chamou o tribuno, mais do que pela tradição pagã da
supremacia da luz sobre as trevas, do Sol sobre a noite, seja celebrado o dia
25 de dezembro em razão do nascimento de Cristo, a verdadeira luz do Mundo, da
presença de Deus entre os homens, da comunhão de ricos e pobres, Reis e
pastores, num sonho de ideal divino e humano, com a presença dos auxiliares
indispensáveis do homem, os animais? O Natal é para os Beirões expressão de
bondade, redenção e amor, como outra não há igual entre os seres vivos da
Criação.
O Madeiro ou Cepo
Sucessor do fogo simbólico do
rito pagão, são incontáveis os adros das igrejas e capelas onde, durante o
ciclo de Natal, ardem velhos troncos de árvore, reunidos por obrigação pelas
mordomias de Santos, ou cortados e acarretados por gente moça, que sobre si
toma de boa vontade aquele encargo.
Se há proprietário que os
ofereça, os madeiros ou cepos são cortados e transportados à luz do dia, aos
olhos do mundo.
Se falta a alma boa, devota ou
compreensiva que associe, os mordomos ou os moços deitam seus olhares pelos
campos, e, alta noite, com carros de bois, estes por vezes também atrelados sem
conhecimento dos seus donos, e munidos das necessárias ferramentas, cortam e
transportam os troncos necessários de árvores, mutiladas e decrepitadas.
E para que ninguém possa
constituir-se parte acusadora, ou testemunhar o facto, cobrem os carros e o
gado com panos, e os homens embuçam-se e munem-se de pedras para, se algo
curioso procurar tirar o delito a claro, ser apedrejado e obrigado a desistir
do seu intento.
O vinho anda à discrição em
cântaros de folha, para quem o quiser beber. Considerado tão cristão como a
cruz (o madeiro é vida, a cruz é morte), enquanto dura ou de todo se não
extingue andam os homens, novos e velhos, em todas as noites dos dias solenes
do ciclo do Natal, em romaria até altas horas pelas ruas das povoações a
cantarem quadras do vasto cancioneiro Natalino. E, reunidos à sua volta, não
cessam de malhar sobre ele com paus e mocas e gritarem: - Ó madeiro! – Ó
madeiro, qu’inda s’tás inteiro! – Viva o cepo! – Arda o toro! – Viva o moro!
Viva o Menino Jesus!
Ao madeiro são atribuídos puderes
sobrenaturais, tais como o de os restos que não arderam preservarem os raios em
dias de trovoada e acalmarem as iras divinas! Através de uma formosa lenda de
Monsanto (a aldeia mais portuguesa), o povo afirma que a cidadela, no ano em
que o governador, desrespeitando o velho costume do Menino Jesus, o mandou
queimar na sua própria cozinha, foi pelos ares, só se salvando a cozinheira,
que sempre se opôs ao desacato.
Nas casas particulares, também o
lume da lareira é reforçado e contínua aceso pela noite de Natal adiante, para,
se o Menino Jesus vier, se puder aquecer.
A consoada
Ceia grande, nuns lugares antes,
noutros depois da Missa do Galo, na consoada se materializa a verdadeira festa
da família!
Vêm todos: os de perto e os de
longe. Correm lágrimas de alegria pela presença dos que vão chegando, mas
maiores e mais abundantes as de saudade pela ausência dos que não puderam
ajuntar-se!
Grande há-se ser a desavença que
se não vergue nesta noite santa ante as palhinhas deste tão belo exemplo de
humildade, vindo para redimir os homens e condenar egoísmos e vaidades!
A dona de casa, avó ou mãe
estremecida, sinceramente devotada à sua função, antecipou de dois dias a
preparação dos acepipes. Os armários e os escaparates estão atascados de doces
de todas as espécies, e no momento próprio entrará na cozinha o bacalhau com
seus acompanhamentos de grelos e ovos, ou o peru, ou o leitão em casas mais
opulentas. Conforme as regiões, há filhós estendidas, fatias-douradas,
coscorões, beilhós, pães leves (pães-de-ló), merendas e bicas, etc.
O arroz doce vai ser cozido e
espalhado por almofias e travessas, e à superfície serão lavradas com canela as
iniciais dos nomes de cada um dos familiares.
Há de tudo e com fartura, do
melhor que os banquetes beirões sabem reunir. Não se descreve a alegria, sempre
e sobretudo baseada nos laços afectivos, que preside e caracteriza o Natal de
Jesus e o tornam a festa por excelência do amor puro!
E não é esquecido o Menino,
porque a mesa ficará posta para que, se vier, encontre que comer.
A missa do Galo
Límpida ou tempestuosa, de
sete-estrelas a brilhar ou de chuva e de neve, o Inverno parece ter reservado
para a Noite de Natal nas Beiras, como nas demais terras de Portugal, excepcional
rigor. Regista-se assim o povo:
Oh meu Menino Jesus
Oh meu Menino tão belo,
Logo vieste a nascer
Na noite do
caramelo.
Por isso, os moradores dos
pequenos lugares disseminados pelos campos não esperam pelo pôr-do-Sol para se
conduzirem às sedes das freguesias a fim de ouvirem a missa da meia-noite,
adorarem o Menino em seu presépio e o beijarem em seu corpinho nu.
Espalhados pelas casas de
parentes e amigos, que também cedo regressam a seus lares, conversam todos em
volta do lume que arde nas lareiras até poder cumprir o preceito da Missa, que
é a maior de todos os dias Santos.
Os sinos, que pela Ressurreição
tocam aleluias triunfantes e nos dias de casamento ou baptizado repicam
festivamente, têm no badalar desta noite vibrações especiais que impressionam e
enternecem mais os corações!
Os seus ecos, protegidos pela
solidão e pelo negrume que envolve a face da terra, estendem-se por maiores
distancias.
Não tardam a tocar a terceira e
última à Missa. A igreja regurgita de fiéis!
À meia-noite, as cortinas do
presépio afastam-se, deixando à vista o Menino com todo o ingénuo
acompanhamento das tradicionais figurinhas de barro.
O pároco sobe ao altar para
celebrar a missa.
Na altura do Evangelho, diz o
significado grande da Natividade e, no final, enquanto o povo entoa em uníssono
os cantares do Natal, dá o Menino Jesus a beijar.
Autos, entremeses e villancicos
Criados em data recuada pela
Igreja para melhor compreensão das suas doutrinas, os autos tiveram larga
divulgação nas Beiras, como ainda pode avaliar-se pelo que andam na tradição do
povo.
Gil Vicente encontrou neles um
valioso elemento de inspiração, se não é que alguns constituíram mesmo
esquemas-tipo, como no Auto Pastoril Castelhano e que se representava no
concelho de Oleiros.
No guarda-vento da entrada
principal da igreja, cinco, sete ou mais pastores (seu número era variável)
aguardavam o momento de exibirem seu estro em louvor do Deus-Menino e
entregarem as suas ofertas: cabritos, cordeiros, chouriços, castanhas, etc.
Senhores do seu papel uns, um
tanto comprometidos outros (sobretudo os que faziam a sua iniciação), todos
encostados a seus cajados, com a sua montada às costas, seus safrões apertados
à cinta e às pernas, seus sarrões pendentes do ombro e seus pífaros (às vezes
feitos por eles próprios, de pau de sabugueiro) na mão, ou no bolso da jaqueta,
relembravam as quadras que haviam estudado ou procuravam fixar rimas para as
que deviam improvisar.
Acabada a Missa, antes que o
prior começasse a dar o Menino a beijar, abria-se a porta do guarda-vento.
Um dos pastores entrava na igreja
com a sua oferta, um borrego, por exemplo, e começava com esta ou outra quadra:
Oh meu Menino Jesus,
Oh meu Menino adorado,
Aqui tendes a visita
Dos pobres pastores de gado.
Sobre a porta do guarda-vento,
pendente de uma corda que ia do coro da igreja ao presépio, estava uma lanterna
de azeite. Representava a estrela que guiou os pastores a Belém. Acesa no ato
da representação e puxada por um cordel, andava do presépio para o guarda-vento
e do guarda-vento para o presépio, sempre à frente dos pastores.
Dita a primeira quadra, o pastor
seguia coxia a cima, guiado pela lanterna e dizia:
Oh estrela luminosa,
Meus passos alumia,
Que eu venho visitar
O filho da Virgem Maria.
Avançava um pouco e recitava nova
quadra:
Oh meu Menino Jesus,
Estou muito admirado
De vos ver, com tanto frio,
Nessas palhinhas deitado.
Próximo do presépio, ou junto da
grade que separava a capela-mor do corpo da igreja onde o pároco e o sacristão
o esperavam, dizia o pastor:
A oferta que vos trago
É simples e de pouco valor,
É apenas um cordeiro
Dos que guarda o pastor.
A lanterna tomava o caminho do
guarda-vento, sempre à frente do pastor. Entretanto, ele continuava:
Adeus, Menino Jesus,
As costas vos vou virar,
Adeus até pró ano,
Se eu cá puder voltar!
Entravam sucessivamente o
segundo, o terceiro e os demais pastores com as suas improvisações no estilo do
primeiro, sendo dignas de registo quadras como estas:
Ó meu Menino Jesus,
Esta gente está-se a rir,
Agora é que eu vejo
Que não devia cá vir.
Ou:
Eu já não vejo a porta
Por onde sair!
Ó Meu Menino Jesus,
Trago-vos vinho moscatel,
Bem sei que não é pra vós
Mas pró senhor padre Manel.
De entremeses, há reminiscências
em Manteigas e Sabugal. Que saibamos, os autos pastoris perduraram por muitos
anos na Figueira da Foz, desviados por vezes, no dizer de Cardoso Marta, dos
Evangelhos, “porque o povo criou para seu uso testemunhos diversos dos que os
concílios declaram canónicos”.
De vilancicos, nada resta nas
Beiras, embora se contassem por milhares os que havia no País.
As janeiras e os reis nas beiras
Crê-se que de origem ou
reminiscência pagã, imitação das Saturnais romanas, a tradição das Janeiras vem
de longe e continua em muitas localidades.
Grupos de rapazes e raparigas,
algumas vezes acompanhados de instrumentos musicais, andam ao começo da noite e
durante toda a quadra Natalina, pelos balcões e pelas portas a cantar e a
pedir:
Boas noites, boas noites
Boas noites de alegria
Que lhas manda o Rei da Glória
Filho da Virgem Maria.
Improvisam quadras de louvor a
cada um dos da família da casa e em seguida:
Levante-se lá Senhora
Do seu banco de cortiça
Venha-nos dar a Janeira
De morcela ou chouriça.
Se o pedido não é atendido, vem
logo o remoque:
Esta casa não é alta,
Tem apenas um andar,
Estes barbas de farelo
Não têm nada p’ra nos dar!
As esmolas recebidas, são, numas
povoações, destinadas à ceia ou festa do grupo, noutras, a mandar dizer missas
pelas almas do Purgatório, e ainda noutras, estão imbuídas das duas intenções!
Esmola se a dais
Não julgues que a comemos,
É p’ra benditas almas
Que todos nós as lá temos.
Registo especial mereciam as
Janeiras de Tinalhas, conhecidas pelo “Ó Ah! Que se chá…”, e que, pelo seu
cunho próprio, atraem à povoação centenas de curiosos.
Nos concelhos de Oleiros,
Proença-a-Nova e Sertã cantam-se os Reis com a mesma intenção das Janeiras e a
seguir os Raminhos:
Um raminho, dois raminhos,
Cada qual com seu confeito,
Viva o dono desta Casa
Esta vai a seu respeito.
São Miguel pediu por nós
Ao Senhor dos Altos Céus,
Dai esmola se puderdes,
Seja pelo amor de Deus.
Há as Janeiras e os Reis, que são
distintas. Aquelas são, por assim dizer, um canto a desejar boas-festas ou bom
ano:
Nós vimos aqui cantá-las
Por ser anos melhorados,
Melhorados nas fazendas,
Descontados nos pecados.
Na festa dos Reis, também se
canta, mas então:
Não vos damos as Janeiras
Porque são dos lavradores,
Vimos cantar-vos os Reis,
Que são dos nobres Senhores.
Certo é que a distinção entre
Reis e Janeiras é um tanto ou quanto ingrata, havendo terras onde se confundem
e onde as janeiras são cantadas do Natal até aos Reis.
Estes cantos populares começam
sempre por uma saudação de entrada, à qual se seguem loas às pessoas da casa
onde se está a cantar:
Viva a dona desta casa,
Viva os anos que deseja,
Depois deles acabados,
No Reino dos Céus esteja.
Também viva, para que viva,
Viva a folha do codeço,
Vivam todos em geral
Que por nome não conheço.
Vem, depois, o peditório
propriamente dito:
Senhora, que estais lá dentro,
Rezando nas contas brancas,
Mandai-nos dar a esmola
Em louvor das almas Santas.
Senhores, que estais deitados
Nesse leito de pau fino,
Mandai já dar a esmola,
Em louvor do Deus-Menino.
Uma vez recebida a Janeira, os
cantadores deitam o agradecimento e a despedida:
Aqui mora alguma Santa,
Pois nos deu as Janeirinhas;
Tantos anos ela conte
Como a casa de pedrinhas.
Deitemos-lhe a despedida
Por cima do laranjal:
Viva a dona desta casa,
Vivam todos em geral!
Despedida, despedida,
Despedida bela-luz:
Os senhores desta casa
Amanheçam com Jesus.
E, com isto, lá se vai o grupo
cantar a outra porta, entoar mais loas, colher mais Janeiras ou então, quando
nada lhes é dado, gritar:
As Janeiras que aqui cantamos,
Tornemo-las a descantar
Que estes barbas de farelo
Não tem nada que nos dar.
Esta casa cheira a unto,
Aqui mora algum defunto!
E outras coisas deste género.
As músicas e letras das Janeiras
variam de província para província e de terra para terra. Mas elas constituem
um manancial riquíssimo do nosso folclore, cheio de pitoresco e de curiosidade.
Na obra, encetada do reaportuguesamento do Natal, deviam ter-se em conta os
cantos das Janeiras e dos Reis. Eles constituem um aspecto tipicamente português
das nossas festas e seria a todos os títulos meritório, e belo, fazer reavivar
essa tradição, que se vai perdendo ou adulterando.
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