Pinhel/Valbom já se vai revestindo de nostalgia, para quem é
(ainda!) visitante recente, que se transforma, como que por magia, em presente…
em dádiva. De longe se agenda a vindima, para coincidir com aquele dia (por
enquanto!) feriado, que vai anteceder um fim-de-semana que se prevê cansativo
mas cheio de cor e aroma.
A terra de Valbom é rica, daquela que ao mexer-se se sente
que tudo ali seria criado. É pródiga esta natureza, que no meio da penedia faz
o milagre da vida parecer algo corriqueiro e vulgar. Tudo cresce e frutifica. Algo
puxa para aquela terra… apetece mexer, sentir.
O motivo da visita é dos mais ricos. Saudades, sem dúvida,
mas sobretudo a Vindima. Baco tem naquelas terras um lugar de frutificação
poderoso. A paisagem está pintada de cores quentes, amarelos, vermelhos e por
aqui e por ali já desponta um ou outro castanho, cores ricas e brilhantes que
nos explicam por que pintou Van Gogh “As Vinhas Encarnadas”.
A viagem até Pinhel foi calma, toda durante a noite, que as
lides profissionais assim obrigam. À chegada esperava-nos uma garrafa de vinho,
um queijo e a ginjinha daquelas paragens, que sai do poder da Terra e que a
mestria do Pedro torna única, acompanhada do sabor bom da saudade morta. Dois
dedos de conversa e rumou-se à cama que o dia seguinte haveria de começar
cedinho e o corpo pedia descanso.
Foi fácil acordar, abrir a janela revela uma paisagem de
encanto. Ainda entre o lusco-fusco já os contornos da serra da Marofa se
revelam, como virgem envergonhada da sua nudez frente ao seu amante. Num plano
mais imediato está o olival da Quinta da Torre. Destas oliveiras emana calma e
paciência, o seu tronco enrugado e áspero encerra séculos de vida e vidas. O
cheiro da terra ainda dormente desperta algum sentido que ainda quisesse ficar
entre lençóis e Morfeu é definitivamente abandonado. A primeira refeição do dia
retempera o corpo e ruma-se à vinha. Esta é uma vindima de pequeno vulto, somos
poucos vindimadores, onze contando até as princesas pequeninas, mas diz o
ditado bem antigo que “o trabalho do menino é pouco mas quem o desperdiça é
louco” e estas meninas deram um valioso contributo. A confiança destas gentes
nas gentes é grandiosa e revela-se nos mais ínfimos detalhes como por exemplo
na entrega das tarefas. Coube ao António, que naquelas terras é o Tó, a tarefa
de conduzir o tractor que seria usado dentro da vinha para recolher os baldes
de uvas que haveriam de encher os caldeiros ou potes como por Valbom se diz.
Foi a sua primeira vez e por certo haveria de estar um pouco nervoso, pois se
nunca tal houvera feito, mas não se notou. A confiança de um fez eco na
segurança do outro e ao final do dia já era por tu o tratamento entre
tractorista e tractor. Pelo caminho até à vinha foram muitas as alegrias para
os olhos, umas a despertar a gula outras a nostalgia. Foram surgindo umas
macieiras que explicam o porquê do Adão ter descoberto que andava nu, se eram
assim as maçãs da Eva o pobre não teve outro remédio a não ser comer… As
figueiras acicatam a gula e também elas têm um episódio bíblico associado mas
desta vez levam à descrença… Judas teria dificuldade em se enforcar numa
maravilha destas… Amoras, pinhas, abrunhos cagoiços (palavrinha curiosa e
sugestiva…) tudo por ali se encontrava e em tudo aquilo que a gula poderia
encontrar satisfação ela não foi negada. A vindima para uns era apenas o
repetir de uma tradição anual, que assume, sem dúvida, o carácter de
peregrinação, tais os rituais que a envolvem, para outros era uma novidade ou
pelo tempo do esquecimento ou por ser a primeira vez. Para a Francisca foi a
primeira vez e numa idade em que já deixará marca na memória. Deu prazer a
vindima, sentir nas mãos o açúcar que o tempo e as Saccharomyces cerevisae hão-de
transformar em vinho, foi um acordar de memórias velhas, bem antigas. Aquela
doçura encerra em si o sol do verão, o poder da terra e faz com que os dedos se
colem. Para uns esta é uma sensação desagradável para outros nem por isso, é
apenas diferente e antecipa o prazer de saborear esse néctar com que Baco nos
prenda. A vinha estava farta, uvas em cachos longos e pesados, numa carga tal
que só a dedicação da Lucinda, mulher forte (de temperamento e de braços!) pode
justificar. Era amor o que se via por aquela vinha em pormenores como por
exemplo o cuidado na eliminação das ervas que competiriam com a videira,
roubando-lhe a água que faria crescer o bago da uva. Finda a vindima ruma-se ao
almoço, que de véspera foi adiantado para minimizar o tempo gasto na sua
confecção. Come-se com calma e bebe-se o vinho do tio Zé da colheita do ano
passado, melhor lembrança não poderia haver.
A tarde leva-nos à vindima do tio Zé e da tia Conceição.
São um casal! E que casal! Entre ambos existe uma cumplicidade que só um grande
amor pode justificar. Seria fácil apontar outros motivos, mas isso seria
tolice. Só o amor explica que um único par de olhos possa ser usado por duas
pessoas de tal forma que é difícil saber quem é o dono deles. Falo de um par de
olhos colocado na mesma cara, claro. A cumplicidade é tal que curtas trocas de
palavras, em surdina, permitem a orientação precisa e perfeita e uma sincronia
tal que com objectos cortantes envolvidos não houve um único incidente. Pela
tarde a conversa vai surgindo, por vezes em tom mais brejeiro com alguma
picardia, mas o tio Zé, respondendo ao seu sobrinho Tó, fez à Tia Conceição o
elogio supremo que uma mulher pode esperar de um homem “ não meu sobrinho,
depois que experimentei este travesseiro nunca mais quis experimentar outro!”.
Figos, maçãs, uvas e uma sede brutal, que valoriza a água até ao infinito,
pintam esta tarde com as cores da alegria e do prazer. Ao fim do dia na cozinha
da tia Conceição Pantagruel e Baco tiveram a adoração que merecem. O Presunto
sentiu a faca pela primeira vez, num trabalho de parceria engraçado, o Pedro no
corte e a Gi a fazer as lascas, cada um reclamava do que podia, mesmo sem
motivo e a gargalhada correu fácil e sonora. O queijo de cabra acicatou o
palato… uma delicia!
Mais para a noite deveria ser o descanso, que o corpo até
foi puxado, mas nada disso. O serão tinha uma garrafa de espumante previsto,
mas antes disso ainda o Alfrocheiro deu cartas, e que jogadas. Este vinho é uma
delicia tenho pena que tenha os dias contados… mas o prazer que já propiciou
ninguém tira. Casa-lo com um naco de pão e umas fatias de queijo é um acto
sublime de prazer. A primeira garrafa foi aberta logo à chegada a segunda coube
a honra ao Bruno, que o fez com o cuidado e carinho que o vinho merece. A festa
terminou com o espumante que estava previsto, vinho branco de uma transparência
e clareza irrepreensíveis feito a partir da casta “baga tinta”. Sem duvida um
vinho excelente, com um aroma fabuloso e um toque de flores inebriante.
Finalmente fomos até Morfeu… no sábado esperava-nos vindima a sério!
Levantar cedo abrir a janela e deixar o mundo entrar pelos
olhos dentro! Hoje a vindima tem gente em número sério, dois tractores dentro
da vinha, vários homens a virar os baldes, um corrupio de gente. Primeiro uma
vinha digna de um postal ilustrado, ao nível da Lucinda, e depois uma tristeza…
parecia rebusco, daquele que qualquer vindimador decente deixa para os
caçadores. Mas o encerramento foi com chave de ouro. Uma vinha com umas uvas moscatel
deliciosas, afinal nem todas as uvas são iguais mesmo sendo da mesma casta!
Nesse final de tarde comer só mais um bago ou mais um figo seria sinónimo de
explosão!… A noite apanhou o pessoal cansadito… só um brinde a uns
aniversariantes e cama!
Domingo e a sua preguiça… difícil sair da cama, mas teve
que ser! Era preciso ir aos marmelos para trazer até às terras do Mondego,
quase onde termina. Ruma-se Talefe para colher os marmelos, aproveita-se para
dar um passeio pela Quinta das Sete Capelas, uma novidade paisagística que
alegrou os olhos da Gi e do Bruno e depois rumar a casa da Nela e do Nor.
Refeição em Valbom ou Pinhel sem grelos à pobre é impensável. Este prato de uma
riqueza extraordinária, que lhe vem da mistura orgiástica do azeite e do alho
com o verde dos grelos e a maciez da batata é um festim para os sentidos.
Acompanhados por uma farinheira torradinha… delicia suprema!
Mesmo para quem é novo nas andanças por Pinhel/Valbom
entende perfeitamente as saudades que sente quem por lá se fez gente e o
destino conduziu a outras paragens…
Anabela Bragança
Coimbra, 9 de
Outubro de 2012
"O que é bonito neste mundo, e anima, é ver que na vindima de cada sonho fica a cepa a sonhar outra aventura… E que a doçura que se não prova se transfigura numa doçura muito mais pura e muito mais nova…" Miguel Torga
Sem comentários:
Enviar um comentário