domingo, 18 de maio de 2014

Festa de Valbom

Valbom é uma aldeia, não se sabe se pequena se grande, porque estas coisas dos tamanhos são demasiado relativas, dependem de variáveis mais complexas e abstratas do que o número de fogos ocupados ou o número de habitantes. Depende de coisas como raízes, família, amizade e outras coisas mais que se afastaram da memória e por isso também da escrita. Será uma aldeia pequena aquela que faz com que acorram em romaria (quase se pode dizer!) pessoas de Lisboa e de outros locais longínquos e distantes? Será uma aldeia pequena aquela que deixa tanta saudade nos corações de quem a vida empurrou para longe? Parte-se das terras do Mondego, onde o rio se espraia numa preguiça mole e sonolenta sem pressa de se aventurar nas turbulências do mar, em direção à “terra”, esse local místico onde as pernas deram os primeiros passos e também os primeiros trambolhões, para ir à Festa. É preciso chegar a tempo da missa que será dita em espaço aberto e versará sobre a importância da Cruz, esse castigo infligido a Jesus, para remissão dos nossos pecados. Objetivo atingido, a chegada a Valbom coincide com o início da procissão que levará os santos desde a Igreja até à capela. Os andores estão carregados de flores, dispostas numa harmonia singular, que por certo representa a adoração dos fiéis. Cada andor exige 4 carregadores. O percurso é duro, com subidas e descidas, e o calor a apertar com uma inclemência que não se supunha e a que ainda ninguém se habituou. É bonito de ver o espetáculo proporcionado pela procissão. É uma forma estranha de ver sendo visto, porque o mais belo de tudo é poder participar, caminhar de forma cadenciada ao som da música da banda que foi contratada para alegrar as cerimónias, admirar os andores na sua profusão de cores e sobretudo ver as pessoas. A importância da Festa pode ser avaliada por muitos fatores, mas o cuidado posto na escolha das roupas é suficiente para classificar esta Festa como “A FESTA”. As mulheres desta terra são bonitas e neste dia estavam ainda mais bonitas, vestidas e calçadas com rigor. A cor da procissão é de realçar e muita advém do brilho destas mulheres, que mesmo em penitência descalça, se vestiram com cuidado e exigência. A missa foi extensa, dorida pelo calor intenso (que deveria ter deixado os penitentes amolecidos e incapacitados para qualquer esforço!) e terminou com o regresso dos andores à igreja, dando uma volta mais longa até serem recolhidos ao fresco, que as paredes grossas de velho granito teimam em conservar independentemente da torreira e inclemência do sol, que parece estar apostado em a tornar em moleza cálida. A música, uma vez mais, marcou a cadência do passo, e o senhor padre, homem novo, ainda de sangue na guelra ia dando instruções aos fiéis. A sua juventude era bem visível no rosto despido de rugas, mas também nos jeans informais que afloravam debaixo das icónicas vestes brancas carregadas de simbolismo. No final da procissão cada um se recolheu ao almoço, que se crê ter sido para todos faustoso e farto em qualidade e iguarias. Mais à noite haveria um divertimento mais pagão. Sim, não há festa que se preze sem que o sagrado e profano coexistam em harmonia, quase se pode falar em casamento… a noite foi aquecida pelo fogo-de-artifício que fez juntar as pessoas sobre a ponte da ribeira e as deixou de olhos postos no firmamento, para apreciar, não a obra de direta intervenção Divina, mas sim a criação humana. Foi bonito o fogo, cheio de cor e magia. No final o bailarico! Corre alegria e riso, duas voltas de dança, umas cervejas com os amigos, o reencontro de quem já não se vê há muito tempo, dois dedos de conversa e a madrugada chega, levando os foliões, mais ou menos bem-dispostos, até aos braços de Morfeu para umas horas de retemperança. No dia seguinte a Festa continua, mais procissão, desfazer os andores, e ficar a deixar a nostalgia fermentar para o ano seguinte. Os mordomos desse ano foram já nomeados e a festa foi-lhes entregue com pompa e circunstância. 

Anabela Bragança.

                                             Santa Cruz

Cerejas, meu amor

Cerejas, meu amor,
mas no teu corpo.
Que elas te percorram
por redondas.

E rolem para onde
possa eu buscá-as
lá onde a vida começa
e onde acaba

e onde todas as fomes
se concentram
no vermelho da carne
das cerejas...

Renata Pallottini

domingo, 4 de maio de 2014

Poema à Mãe

No mais fundo de ti
Eu sei que te traí, mãe.

Tudo porque já não sou
O menino adormecido
No fundo dos teus olhos.

Tudo porque ignoras
Que há leitos onde o frio não se demora
E noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, às vezes, as palavras que te digo
São duras, mãe,
E o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
Que apertava junto ao coração
No retrato da moldura.

Se soubesses como ainda amo as rosas,
Talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa;
Esqueceste que as minhas pernas cresceram,
Que todo o meu corpo cresceu,
E até o meu coração
Ficou enorme, mãe!

Olha - queres ouvir-me? -
Às vezes ainda sou o menino
Que adormeceu nos teus olhos;

Ainda aperto contra o coração
Rosas tão brancas
Como as que tens na moldura;

Ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
No meio do laranjal....

Mas - tu sabes - a noite é enorme,
E todo o meu corpo cresceu.

Eu saí da moldura,
Dei às aves os meus olhos a beber.

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo as rosas...

Boa noite. Eu vou com as aves.

Eugénio de Andrade